Permitir prisão após segunda instância é mudar irregularmente a Constituição

Se o Supremo Tribunal Federal confirmar, nesta quinta-feira (8/9), que a pena de prisão pode ser executada antes do trânsito em julgado da condenação, estará modificando de maneira indevida a garantia constitucional da presunção de inocência, fazendo o sistema penal brasileiro regredir ao modelo repressivo existente no Estado Novo, ditadura de inspiração fascista de Getúlio Vargas que durou de 1937 até 1945 no país. Essa é a opinião de especialistas ouvidos pela ConJur.

O criminalista Alberto Zacharias Toron espera que o Supremo reverta a decisão de fevereiro que autorizou a prisão após condenação em segunda instância, pois a regra está explícita na Constituição. Ele se refere ao inciso LVII do artigo 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

“Os ministros vão ter que gastar muita tinta para dizer o contrário disso. Mesmo que a maioria do STF, ainda que corretamente, possa identificar alguma disfuncionalidade no sistema punitivo, convenha-se que só mesmo o legislador poderia mudar a regra editada conforme a Constituição. É triste ver a arbitrariedade (eufemisticamente chamada de ativismo judiciário) emanar do órgão que deveria ser a antítese disso. Agem, pesa dizer, como se fossem os militares ao tempo da ditadura: como querem, sem freios ou contrapesos. Numa palavra, não respeitam o ordenamento jurídico como posto pelo Legislativo”, analisa Toron.

Segundo o advogado, caso o STF valide sua decisão anterior, haverá um regresso ao sistema da redação original do Código de Processo Penal de 1941, que admitia a execução provisória logo após a condenação em primeira instância.

Já a advogada Conceição Aparecida Giori acredita que o atual entendimento do Supremo é ainda mais autoritário do que o do Decreto-Lei 88/1937, a “marca registrada” jurídica da ditadura varguista. “No Decreto-Lei 88/1937, a presunção de culpa estava limitada às hipóteses em que o réu tivesse ‘sido preso com a arma na mão, por ocasião de insurreição armada, ou encontrado com instrumento ou documento do crime’”, explica. “No fatídico HC 126.292, a presunção de culpa foi generalizada, cabendo para qualquer situação. Espraiou-se feito um câncer, contaminando toda a lógica de um sistema que militava a favor do resguardo da presunção de inocência.”

Ela também lamenta que o STF alargue o sentido de um comando constitucional que não dá margem a interpretações. “É triste que tenhamos assistido um tribunal constitucional portar-se em desacordo com a Constituição, desautorizando o legislador constituinte e suplantando a vontade desse pela sua própria vontade. É ainda mais desestimulante sob o aspecto da credibilidade que deveria ser depositada no Supremo acreditar que, tendo oportunidade de rever ilegalidade por ele mesmo praticada, assim não o faça, legitimando a sua decisão não pelo justo e pelo direito, mas apenas pela força.”

O criminalista Fernando Augusto Fernandes tem visão semelhante, e ressalta que “uma composição momentânea do Supremo não pode mudar a Constituição e uma jurisprudência que já estava pacificada há anos”. De acordo com ele, a corte não pode punir antecipadamente o cidadão por conta da morosidade judicial em apreciar recursos.

“É triste ver um país que não consegue resolver seus problemas administrativos e, em vez disso, diminui direitos e garantias. É como se por causa da falta de leitos nos hospitais diminuíssem o numero de doenças reconhecidas pelo SUS”, compara o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fábio Tofic Simantob.

Da mesma forma, o STF não pode alterar uma proteção fundamental da Constituição para satisfazer interesses populares, analisa o criminalista Fabrício Oliveira Campos. “Enquanto os manuais dizem que os direitos e garantias individuais devem caminhar para frente, devem agregar-se cada dia mais às noções elementares de cidadania, o Supremo amputa uma de suas faces para adular conceitos apodrecidos e contaminados de uma justiça criminal popularesca para adular o público que assiste à peça que está em cartaz, mas que um dia vai sair de cartaz e talvez seja esquecida.”

Na visão do advogado Francisco Bernardes Júnior, a confirmação da possibilidade de se executar a pena antes do trânsito em julgado “opera uma drástica mudança no cenário judicial do país”, pois interrompe um ciclo virtuoso de diálogo entre os Poderes na busca de obter aprovação da sociedade na luta contra a impunidade.

“Na prática o estrago é grande quando se pensa, apenas a título de exemplo, na execução antecipada de pena destes 25% de réus que têm suas condenações revertidas tão logo cheguem com as suas causas no Superior Tribunal de Justiça (conforme pesquisa da FGV Direito Rio) e a falta de mecanismos para uma reparação eficiente pela indevida liberdade cerceada”, analisa.

“Problematiza ainda mais os efeitos desta decisão do STF a qualidade das decisões judiciais de primeiro e segundo graus produzidas em casos de réus pobres pelos fóruns e tribunais do país. A questão da pobreza do réu tem impacto direto no seu direito de defesa, criando em larga monta de casos falhas graves nos processos que só vêm a ser sanadas pelo olhar atento e a visão intelectualizada dos ministros dos tribunais superiores que não se deixam influenciar pela gravidade abstrata do crime e por pressões de toda espécie, julgando casos de acusações graves de forma acentuadamente técnica e imparcial”, opina Bernardes Júnior.

Já o especialista em Direito Criminal Eduardo Carnelós tem expectativa que o Supremo reafirme seu papel de guardião das garantias e direitos individuais e volte ao entendimento que tinha até fevereiro.

“Em plena vigência do Estado Democrático de Direito, nossa esperança é de que a Corte Maior não ceda aos estridentes trinados das aves de mau agouro, e volte a consagrar a prevalência dos princípios e das normas inscritos na Constituição da República, que impedem a prisão para imediato cumprimento de pena imposta por decisão ainda sujeita a recurso. É fundamental que os ministros demonstrem a todo o país que não se deve, nem se pode, adotar medida que atente contra princípios constitucionais, ainda que a pretexto de combater a corrupção e outros crimes. Afinal, não há delito mais grave e mais pernicioso do que rasgar a Carta Política da República”, vota Carnelós.

O criminalista Antonio Ruiz Filho lembra da fala do ministro Marco Aurélio, ao discutir o caso: “A hermenêutica não pode superar o texto expresso da lei, sob pena de rescrevê-la”. O que se quer, com a mudança de entendimento, afirma o advogado, é “subverter o sistema, para prender antes da condenação definitiva, sem a presença dos requisitos que permitam, por exemplo, a prisão preventiva. E, ao que parece, de forma casuística, para alcançar os envolvidos na operação ‘lava jato’”.

Outro lado
Por outro lado, o desembargador federal Fausto De Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, avalia que a autorização do STF para a execução da pena antes do trânsito em julgado não inverte o ônus da prova, apenas estabelece que a presunção de inocência deixa de valer após a condenação em segunda instância.

“É evidente que a presunção pode ser revertida em dado instante. Isto nada tem a ver com a produção de prova, que continua a cargo do Ministério Público. Por isso que, tanto na França quanto nos Estados Unidos, há condenações de primeira instância em que a prisão preventiva pode ser determinada mesmo havendo recurso e isso não é considerado uma violação da presunção de inocência”, defende o desembargador.

“O conceito é interpretado no sentido de que a presunção da inocência existe até o momento em que a culpabilidade é legalmente provada. E isto não significa aguardar o término de todo e qualquer recurso até porque sempre caberá a revisão criminal, mesmo após o trânsito em julgado das decisões criminais”, examina.

Por sua vez, o advogado Alberto Pavie Ribeiro declara que essa mudança de entendimento quanto à presunção de inocência “não implicaria um retrocesso para tempos de um Estado totalitário ou de exceção”, uma vez que em diversos países o condenado nas instâncias inferiores recorre da prisão.

O caminho para reduzir a morosidade da Justiça – e, consequentemente, a impunidade – seria tirar do Supremo a função de ser um “tribunal penal de última instância”, afirma Pavie. Isso porque “11 juízes jamais poderão dar vazão aos recursos dos inconformados nas instâncias que lhe antecedem, em um país da dimensão populacional do Brasil.

“Daí a necessidade de ser fixado um entendimento que restaure a concepção original do STJ como corte que poderia aumentar o número de seus juízes, para superar a antiga crise do STF. As instâncias ordinárias e mesmo a especial do STJ não podem ser consideradas como mero ‘juízo e passagem’ para o STF. Espero, sinceramente, que o STF crie um ‘meio termo’ de sorte a permitir pelo menos o exame da legalidade das decisões em sede de recurso especial pelo STJ, sem se cogitar da execução imediata das decisões penais das instâncias ordinárias. Ato seguinte, viria a luta para ampliar o STJ e deixá-lo aparelhado para cumprir com celeridade a sua missão constitucional originária. Se é juridicamente possível, não sei. Mas que é conveniente, isso é”, diz Pavie.

Fonte: Conjur